quarta-feira, 24 de março de 2010

Ali à frente

Aqui de onde o vento sopra, eu fico sentada a olhar pra frente. Daqui de onde eu me recosto pra pensar em mim, fico a observar as pessoas que vivem mais ali à frente e daqui eu vejo gente andando, gente resolvendo problemas, gente criando problemas. A vida ali na frente parece passar comum e apressada, num marasmo indiferente, numa rotação contínua. Quanto mais espio, mas tenho a impressão de que ali tudo é mesmice, tudo é nada, e nada é menos ainda, passa e ninguém vê.
As pessoas ali da frente medem o tempo em “check-list”... Cada um tem o seu, aliás, cada um tem sua lista infinda de coisas a fazer, cada qual com seu horário limite de resolução e, quando não são resolvidas a tempo, o dia tem horas a mais, as semanas tem dias e noites a mais e no final do mês tem olheiras a mais, cabelos a menos, doenças a mais, unhas a menos, gritos demais, respeito de menos...
Eu fico daqui a observar o mundo girar ali na frente e até confesso que às vezes fico zonza. O mundo ali gira rápido demais. Tão rápido que nem o vejo girar.
De longe eu sinto o vento soprar e de leve sinto a vida correr... Eu, que sentada aqui atrás deveria pensar em mim, fico só a olhar pra frente como quem espera a corda bater no chão pra começar a pular.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O dom

Tinha o dom de prever o futuro. No final da tarde, sentado na sua cadeira de espuma, fechava os olhos enquanto a brisa beijava sua face. Na mente vazia vinham-lhe os acontecimentos do dia seguinte. Como filme, pessoas, lugares, sabores e tropeços apontavam na sua frente fazendo-o viver o amanhã naquele vão instante. Tudo parecia tão real.
Ao acordar, preparava-se para encarar a falta de surpresa que o dia antevisto lhe presentearia. O tal dom já lhe causara certo desgosto, pois já não mais conhecia os sentimentos repentinos e os sobressaltos de uma vida inefável, quiçá os imprevistos de um cotidiano pacato... Amuou.
Já nem se lembrava há quanto tempo (con)vivia com esses lampejos e tentou por algum tempo não vislumbrar aquele final de tarde e nem deixar que a tal brisa lhe beijasse parte alguma do corpo, mas percebeu que todo aquele dom estava bem dentro da sua cabeça vazia. Nem precisava fechar os olhos para ver as cenas do dia seguinte saírem de uma cartola como se fosse mágica manjada. Desistiu de tentar reprimir o fardo condão e seguiu vivendo assim.
Talvez o tal menino consiga um dia perceber que se fizesse seus dias diferentes, deixaria de prever o óbvio.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Rameira

Toda noite às sete e quinze, prepara suas coisas no quarto escuro e inicia seu ritual. Amarra os cabelos vermelhos com um elástico frouxo, despe-se na frente do espelho com tal delicadeza a fim de contemplar cada parte do seu corpo como se fosse o de outra mulher. Observa dobras, curvas, pêlos, sinais e dá especial atenção as suas costas. Liga o chuveiro, enquanto isso molha seus pés e sente a temperatura da água aquecer. É o começo de uma nova lua, já que as noites são todas iguais.
Ainda enrolada na toalha, liga o som e ouve uma música brega que fala sobre um amor barato, desses que ela desconhece e desacredita, pensa em como a vida não lhe fora complacente até aquele momento e prefere esquecer as oportunidades que não teve... Hoje, ela não chora mais, já se conformou com o cheiro do cigarro e o gosto de whisky vagabundo na boca de um qualquer no fim da noite.
Nos olhos claros um lápis grosseiro, para os lábios úmidos um batom vil e entre os seios arredondados uma lembrança de quando era mulher... aliás, aquele cordão era a única coisa que levava consigo e que parecia ser verdadeiro. No espelho, tudo soava tão falso. Até mesmo seu olhar arrojado fazia lhe parecer pintura.
Terminou de se arrumar, soltou os cabelos de fogo, ajeitou a meia fina desfiada e como de costume testou-lhe o hálito. Lá fora o vento sopra cortante, mas a essa altura da vida, nada corta mais do que se olhar e não se reconhecer.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Grafite

Dizia que não gostava de viver do passado, mas sempre levava nas mãos um papel sem pauta e um lápis sem ponta. Tinha a mania de anotar as coisas que via na vida, na vila, na veia, na pele. Anotava por anotar e guardava por guardar o papel amassado no bolso da calça larga. Fingia esquecê-lo por lá, mas queria mesmo era que alguém achasse o papelzinho amarrotado e lesse os segredos que aquele lugar escondia.
Às vezes, quando o dia estava calmo ou quando Dona Celeste não visitava a Casa de Pregos com seu decote em “v”, inventava coisas, histórias, romances e, sentado na escada que dava pra rua, imaginava cenários do arco da velha. Passava tudo pro papel... esses, acabava por esconder num potinho dentro do armário de bolachas já que nunca tinha bolacha pra comer.
Escrevia sobre o mundo que conhecia, sobre causos exagerados que escutava na porta do armazém entre um fiado e outro, sobre pessoas que já ouvira falar e sobre as dores de um lugar esquecido.
Não escrevia sobre si, sobre os padres da cidade e nem sobre Ana.
Não escreve sobre si porque achava sua vida pequena demais pra tanto papel que carregava. Os padres, bom... esses já sabiam demais sobre tudo e todos... nunca achou que os padres fossem pessoas confiáveis, preferia seus papéis manchados do grafite.
Não escrevia sobre Ana... Para Ana, apenas reservava-lhe os sonhos.