terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Escovas

De repente acordou de sobressalto e correu para o banheiro. Olhou em cima da pia e temeu pelo que viu. E não é que a escova de dente dela estava ali.
Juntinha com a escova dele parecia até um casal apaixonado. Se não fossem pelas cerdas gastas e despenteadas, ousaria compará-las com um casal recém juntado. Por um momento até esqueceu de que se tratavam de apenas escovas de dente.
Começou a olhar em volta e tentou se lembrar desde quando tudo por ali ficou tão diferente, desde quando tudo ficou tão... tão... tão ela.
Ainda sonolento iniciou sua rotina matutina com uma coceira habitual. Entrou no chuveiro e girou o registro ao máximo, só pra água sair bem fresquinha. Enquanto se ensaboava, olhava pela janela pequena os poucos carros passarem lá fora. Ainda era bem cedo.
Não era adepto a frescuras e gostava mesmo era de lavar os cabelos com um sabonete qualquer, até que percebeu que dividia seu banho com pelo menos quatro tipos diferentes de xampus para cabelos iguais. À esquerda havia um tubo desajeitado com um rótulo brilhante e colorido, que dividia espaço com cremes de hidratação profunda, rápida, colorida, anti-friss e uma gama de coisinhas que fazia seu banheiro simples mais parecer perfumaria de luxo. Preferiu manter distância, já que seu lado másculo e viril não lhe permitia interesse por essas coisas cheirosinhas... Lavou-se.
Eram tantos os cremes, os cheiros, os óleos, as máscaras, que até tentou formar alguma opinião sobre o universo feminino. Por que são tão mimadinhas? Enfim...
Quando já estava com a chave na porta para destrancá-la, recuo. Deu meia volta, subiu as escadas e como fazia todas as manhãs deu-lhe um beijo cuidadoso nos lábios. Desceu as escadas e ainda no caminho conseguia sentir o cheiro bom que vinha daquela mulher. Respirou bem fundo, só para levar todo aquele perfume consigo para lembrá-la durante o dia.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Mais por si...

Todos os dias ela se levanta pronta para fazer mais por si e pelo mundo. Quando acorda, sempre acha que tudo esta diferente de como deixou no dia anterior. Não toma café, ouve rádio e gosta de gatos. Aprecia boa música, boa comida, adora frases de efeito, metáforas, entrelinhas e ironia.
Quando era criança, pensava em ser gente grande e psicóloga, agora sente saudade do cheiro da lancheira que levava o pão adormecido. Brincava de esconder coisas, de quebrar coisas e de colar as coisas que quebrava, com isso, descobriu com o choro a sua falta de habilidade artesanal. Chorou muito até parar de brincar de quebrar coisas. Hoje quebra regras, leis, laços e esconde o rosto quando chora.
Na escola, aprendeu a Fórmula de Baskara, o valor do pi e o valor de uma amizade. Aprendeu sobre verbos, sinônimos, homônimos, meninos e algumas sensações diferentes. Estudou a Grécia, a Mesopotâmia, o Egito e conheceu o próprio bairro atrás das festas no final de semana. Não entendia nada sobre física, mas amargurou a Teoria da Relatividade, quando descobriu que amar é bem relativo.
Tornou-se independente, desapegada, transigente e caminhou por algumas estradas a sós. Tentou se entender, entender o outro, entender porque não podia mudar o mundo, porque não podia mudar de casa, de família e porque Deus é tão soberano. Parou de tentar entender.
Ela coleciona conchas, mas quase não vai à praia, guarda receitas e não cozinha, viaja pelo mundo, mas não conhece a si mesma. Adora banho quente, violão, dirigir e ler. Canta no chuveiro enquanto lava a barriga, cultiva samambaias, cactos, relações, sentimentos e não tira o relógio para dormir.
Ouve MPB, música latina, barulho de chuva na vidraça e os passos do vizinho no apartamento ao lado. Pensa sobre a vida, sobre o futuro, chora, ri e não acredita na inveja. Sonha em conhecer a Jamaica e os bisnetos. Cria pretexto para sorrir, tem medo de não ser feliz, mas todos os dias ela se levanta pronta para fazer mais por si e pelo mundo.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Clamor

Foi no silêncio de uma lembrança solitária que você me pegou a olhar pro passado e a contemplar páginas viradas. O tempo passou depressa demais. Tão depressa, que parece ter sido ontem que te deixei me ver partir. Parece ter sido ontem que deixei um pedaço de mim para trás e me contentei em viver metade.
Devia ter sido aos poucos e sem pressa o nosso regresso, mas esse agitado e impulsivo coração insistiu em se jogar e sem olhar para os lados, se despiu descaradamente, fazendo neblina virar dia de sol.
Neste ponto em que cheguei, não é mais permitido voltar atrás. A essa altura só posso me guiar pela luz do seu olhar e me deixar levar pra onde você queira me levar.
Hoje, quando vejo a tarde cair, me lembro do pôr do sol onde tudo terminou e lamento... Lamento por não ter mais dias para ver tudo acabar, lamento por saber que a única coisa que nos une é o mesmo sol que queima por dentro, lamento por ter sido eu, por ter sido você.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Colombina

Num quarto à meia luz ela pintava os olhos e a boca, as bochechas já eram rubras de se ver e um brilho prateado quase lhe escondia os ombros. Pendurado na porta do guarda-roupa, um vestido lilás esperava ansioso pra sair naquela noite, o quarto exalava perfume de romance e da janela já se podiam ouvir as marchinhas que vinham da Avenida Sete. O coração ritmava em som de liberdade e um excesso de euforia vazava-lhe pelos poros. Aquela noite prometia perfeição e a lua anunciava mais um espetáculo do Carnaval.
Do outro lado da cidade, desenhava do lado esquerdo da face uma lágrima azul. O rosto parecia pálido e languido, as sobrancelhas fartas e pesadas saltavam lhe os olhos e do sorriso, somente um traço triste que fazia contraste com as cores daquele lugar. Para vestir, nada mais que o brilho num olhar ingênuo a esperar por uma dama foliã.
Ela, embebida de encanto e frenesi. No vestido, borboletas e lantejoulas. Ele, contido ansioso a procurar. Os outros... bom, os outros eram apenas rastros na paisagem.
Na rua, as pessoas desenhavam vida com os corpos e no movimento daquela multidão o som mudou. Os olhos, que procuravam por felicidade, dilataram-se frente a tanta delicadeza. Por um mísero instante se encontraram de relance, semearam delírios e desviaram-se encolhidos. As marchas tocavam sem fim e o som dos tambores acompanhava agora as batidas do coração. Um coração que batia descompassado.
Naquela loucura carnavalesca, os blocos misturavam cores e sentimentos, no coração paz e terror e, para Pierrot, a lágrima deixou de ser apenas tinta. O Carnaval em segundos chegou ao fim. Passou.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Passatempo

Todos os dias ela se levanta e faz tudo exatamente igual... Como se fosse um relógio, conta minutos e segundos de cada instante em vão. Ajusta o tempo, olha no espelho, ajeita a gola da blusa azul e se pergunta o porquê daquela cor tão desbotada.
Seu passatempo é colecionar tempo perdido. Ela os guarda numa caixinha de madeira toda catalogada em veludo e de tempos em tempos se põe a contá-los e a se vangloriar pela dedicação ardente. Nem se deu conta que tal dedicação lhe rouba o tempo, mas admira sua coleção de minutos intactos e por vezes se questionou sobre o quanto valeriam. Com certeza muito menos do que qualquer pessoa poderia pagar...
Um dia, numa época qualquer, ela vai aprender que tempo não se guarda, não se coleciona ou vende, apenas se gasta, consome... como se fossem os últimos, como se não tivessem fim.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Rotina

Estava parecendo a APOLO 11 em 16 de Julho. Eram luzes, fogos e foco... olhares que vinham das praias, das estradas, dos campos e da TV. Era um pequeno mundo aguardando por uma contagem que não viria. Devia ser o evento da humanidade, mas naquele coraçãozinho miúdo, uma luz intermitente teimava em brilhar. Será algum defeito ou imperfeição?
Que nada, era só uma palpitação corriqueira que costumava anteceder os grandes desastres. Melhor que fosse assim, já que desastres desordenados sempre foi sua especialidade na arte de fazer besteiras.
Os disparates nasciam férteis e a cada um, vinha outro mais, mas dessa vez, algo pareceu estar diferente, dentro da ordem, numa nova ótica, foi então que mandou parar, parar de girar, parar de contar, parar de brilhar e pra quê? Só pra se assegurar de que tudo daria errado outra vez... e deu.
E não é que o coraçãozinho miúdo se abrandou. Para ele, imaginar que algo pode tira-lhe do caminho habitualmente trilhado já lhe faz murchar os cactos.
Tudo seguiu seu curso anormal naquela noite.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Edícula

Esse meu lado perfeccionista e sistemático às vezes me poda em algumas das minha vontades mais comuns e simples... Nem sempre a casa precisa estar pronta pra se poder morar. Foi por esse motivo que se criaram as edículas apertadas e inacabadas no fundo dos quintais.

Meu quintal está aqui... Rústico, com ervas daninhas e pragas pelo chão, mas lá nos fundos, recostada num muro de reboco, está uma pequena edícula e é alí que vou morar por enquanto.

Ajeito uma mesinha no canto da parede, penduro um espelho com um prego enferrujado que caiu da bagunça, jogo um lençól na fresta que chamo de janela e te convido pra entrar e tomar um chá na minha "xicrinha" de alumínio, só tome cuidado para não queimar os dedos.

Aqui é pequeno, úmido e à noite faz frio, mas do buraco na telha improvisada dá pra ver que não chove nesta madrugada. O céu está cheinho de estrelas...

Limpe os pés antes de entrar, mas fique à vontade, essa edícula também é sua... Seja bem vindo...